sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Os Amantes


Rodrigo silencioso saboreia seu café da manhã. Segura a xícara fumegante na mão direita e o jornal na esquerda. Vez por outra, sobre os óculos, lança um olhar furtivo para Dulce.
Admira a esposa que nunca admite cansaço ou tristeza.
Desde o primeiro encontro, a disposição dela para viver o conquistou. Ela oferece equilíbrio à alma sombria e romântica dele. A presença daquela mulher, alegre e generosa, representa o sol que aquece os seus dias. A luz que ilumina o caminho por onde adora seguir e colher flores.
Se alguém lhe perguntasse o que mais gostava nela, com certeza responderia que tudo, desde o seu cheiro até seu sorriso. O jeito simples de menina e a sensualidade de mulher lhe aguçam os sentidos masculinos. As virtudes e até mesmo os defeitos da esposa agradam-lhe o coração apaixonado.
Sempre ri sozinho ao relembrar os puxões que recebe quando alguma mulher se aproxima mais assanhada. Dulce assume seu ciúme dizendo bem “baixinho” para que todos possam ouvir: essa criatura está pensando o que?
Rodrigo, nessas ocasiões, repreende o exagero da mulher com seriedade, mas gargalhadas explosivas, escondidas, ecoam e o preenchem de orgulho ao sentir o quanto Dulce o quer só para ela. Apesar da vaidade, o bom senso o aconselha a frear os ímpetos da esposa. Morreria com esse segredo. Se lhe apoiasse, ela poderia se inspirar no poema Briga No Beco da Adélia Prado e pular na jugular de outra. Então, depois disso, quais milagres Dulce seria capaz de fazer?
Ao longo de todos aqueles anos de casamento, o sexo vivenciado era lúdico, intenso, criativo, farto. Pertencer a ela se revelava, na intimidade de amantes, uma dádiva dos céus. Jamais ouviu um único não a seus desejos. Tudo era possível, permitido, consentido, experimentado. Após as noites celebradas pelos orgasmos múltiplos da mulher, adorava sair bem cedo e comprar flores do campo, as preferidas de Dulce. Inúmeras vezes repousava o perfume e as cores sobre a seda de dormir que ainda sonhava com as carícias ousadas dele. Cobria-lhe assim o corpo amado como se quisesse presenteá-lo, por inteiro, pela plenitude do prazer alcançado. Nessas manhãs, Dulce despertava preguiçosamente, o olhava com ternura, e pedia para que a abraçasse mais e mais forte, enquanto lhe sussurrava: é no seu abraço que encontro o meu lugar! Rodrigo sentia, nesses profundos e inesquecíveis momentos de carinho, o quanto era maravilhosa a sensação de amar e ser amado.
A voz de Dulce, ao longe, o sequestra de seus devaneios. Era preciso concluir uma defesa e mandá-la para o fórum.
Já a caminho do escritório, inspirado pelas lembranças, decide que compraria o vinho tinto preferido da esposa quando retornasse para casa.
Sobe o elevador do décimo segundo andar de seu escritório com a imaginação navegando nas ondas escarlates. A boca discreta denuncia um sorriso maroto. Pensa que talvez fosse melhor comprar muitas garrafas.
Sua mente age na velocidade urgente de suas fantasias. E, assim, antes da hora do almoço, entrega o processo concluído para a secretária.
Rodrigo sai do trabalho, compra os vinhos e deixa o carro no posto mais perto de casa para uma geral. Deseja surpreender Dulce que só o espera no fim da tarde. Vai levá-la para dançar em algum lugar agradável, especial naquela noite. Planeja tudo perfeito em detalhes.
Entra pela porta dos fundos, passa pela cozinha, mas ela não está lá. Abandona os sapatos, o terno e a gravata na sala de jantar. O som ligado toca baixinho B.B. King. Vai até o quarto e a encontra completamente nua, agasalhada, protegida, coberta pelo corpo de outro homem. Dormem profundamente com braços e pernas entrelaçados. Os cabelos negros, esparramados na cama, escondem o rosto do amante, apoiado em seu pescoço. A displicência da cena captada por seus olhos cega-lhe o cérebro. As garrafas explodem contra as paredes do vazio. O alvo atingido, em seguida, é a própria jugular. Sangue e vinho se misturam. Inútil, o escarlate jorra sem milagres...
Cris Lopes