domingo, 11 de abril de 2010

Secreto Inverno


O salão amplo, iluminado pelo sol de outono, ostenta ainda a decoração da última festa de aniversário. Balões coloridos e feixes ondulantes de serpentina contornam o teto, intactos. A semelhança das alvas cabeleiras paralisa-me no portal por alguns segundos, enquanto a localizo. Não avisei que chegaríamos e, quando nos aproximamos, ela nos estende a saudade com os braços... A envolvemos ternamente...

Deixo que minha filha comece a contar-lhe todas as novidades. Quieta, em sua cadeira, sorri meio sem graça. A contemplo nos seus noventa e cinco anos. O tempo parece ter se enganado desde o último mês. Pela primeira vez causa-me estranheza. A timidez ou a quietude nunca nortearam seu comportamento. A curiosidade e a tagarelice sempre foram seus eficientes tentáculos para controlar tudo e todos.

Nossa comunicação é íntima e silenciosa. Nossos olhares compartilhados denunciam o desconforto da nova situação. Nas frases repetidas, entrelinhas, as nuances em seu rosto parecem se desculpar por não conseguir mais ser a mesma... Compadeço-me amedrontada pelo presente e ameaçada pelo meu próprio futuro.

Silene, sentada próxima, balança a boneca junto ao coração, escondida em pensamentos vazios. Reflexiva, acompanho o ininterrupto ninar de mentira. Outros olhares atentos desejam saber se a criança já dorme. Expressões petrificadas revelam sonhos incrustados e completam o cenário insólito, perfeitamente organizado.

O aroma costumeiro de sabores intromete-se no cheiro das roupas limpas e no relato das novidades. A moça robusta da copa aproxima-se com um prato raso de plástico branco. No entanto, a boneca teima em permanecer naqueles encolhidos braços. Surpreendo-me com a forte resistência do corpo miúdo. Minha avó, mais desconcertada do que antes, explica-me a rotina de Silene: os alimentos precisam ser derramados em pacientes colheradas, porque ela não suporta mais comer. Pergunto-lhe sobre a boneca. A lucidez altiva tenta desculpar os trejeitos da anciã. Revela que ninguém consegue separá-la da menina de plástico e que tem uma filha. Penso o quanto ela deve ter sido uma boa mãe e a compreendo profundamente.

Atenta ao nosso diálogo, minha filha parece reflexiva, enquanto a barreira desdentada testa a persistência da copeira. Num salto, a análise ganha ação e se posiciona junto a dupla que trava sua batalha. A jovialidade sábia e sensível comenta que a boneca é bonita, mas que ainda seria mais linda se comesse e ficasse forte. A barreira se abre no sorriso da boca oca e recebe a primeira colher cheia. As outras descem distraídas. A boneca feliz se empina para mostrar a saia nova. A funcionária da copa, aliviada e agradecida, sorri também pela primeira vez.

Pratos, copos e talheres são distribuídos aos que ainda se alimentam sem ajuda. Depois, há rodízio diante dos corpos contorcidos e paralíticos. Movimentos emprestados garantem a sobrevivência.

Minha avó se despede. Parece não querer nosso testemunho ao seu dominical almoço. No entanto, caducamos o seu apelo e permanecemos, sem o mínimo desejo de partir. Posicionamos a cadeira da “Iaiá” próxima à mesa. O risoto chega e o feijão vem depois num pequeno pote separado. Pergunto-me desde quando ela gosta da comida assim. Sempre impliquei com a mania que tinha de misturar toda a refeição. Mais uma vez a desconcertante comunicação sem palavra. Ela me lança um olhar de soslaio embaraçado. Nunca pensei que, na minha vida, espionaria um pote de feijão!

As estações vestem e despem as perenes naturezas com suas distintas formas mutáveis...

O calendário, lá fora, assinala o outono. No entanto, para todos eles, o inverno já chegara... O tremor, a secura e a escassez fazem com que a simples tarefa de comer necessite de muita concentração, empenho e coragem. Em cada colherada minha avó revela-se a guerreira, a mulher de fibra de outrora. O talher é depositado ao lado do prato vazio. O feijão é suspenso como oferenda e o último a ser sorvido aos goles . Compreendo agora o pote.

O vento espalha a chuva...

A forma hibernada já não me provoca mais estranheza. Reconheço nela a mulher que sempre chamei de minha vó e a admiro mais do que antes...

Cris Lopes