terça-feira, 28 de julho de 2009

Hermes


(Tela de Vincent Van Gogh: Retrato de Père Tanguy)

José beira os oitenta anos, mas ninguém diz. Aparenta no máximo setenta. É um homem que vive sem pressa e com sabedoria. Inteligência que nasce essencialmente da alma, e brota na sensibilidade de um bom e simples coração.
Sai de casa bem cedo. Na calçada, olha a porta do comércio ainda cerrada. Observa os movimentos dos vizinhos e escuta-lhes os bons dias, os até logos, as queixas. Sozinho, coça as curvas do maxilar e abaixa o olhar até o papel de um picolé amassado. Tira o pequeno boné que lhe disfarça a calvície e, por alguns minutos, cerra os olhos lacrimejantes...
Caminha, então, duzentos passos, até um pequeno portal de ferro. Fixa as lanças. Sente-lhes atravessar o coração. Respira fundo a coragem do momento. Precisa ser forte pelo tão estimado patrício. Toca a campainha. Ouve os latidos do Chuvisco e a disputa dos meninos pelo lugar de pódio na janela. E de lá, do topo da escada, ela, tão inocente, caminha em seu lindo sorriso. Ele a recebe com seus velhos braços. Há, naquele abraço, o segredar de amigas almas. Foi assim desde a primeira vez que a abraçou. Não tem filhos, contudo o amor que nutre por Márcia é verdadeiro e paternal.
O sol já promete no céu uma linda manhã primaveril, entretanto, para José, o dia não poderia ser mais nebuloso e nem ele mais velho. Sente-se pesado com a carga que responsabilizou a si próprio. No entanto, alguém precisava ser o mensageiro, então, em honra à amizade de tantos anos, cumprisse ele o papel de Hermes.
No centro da sala de estar, acalenta os mimos dos meninos que o chamam de vô, enquanto Márcia busca o café. O forte aroma desperta a casa. Pede a eles para brincarem no quarto, porque precisa falar com mamãe, sozinho.
Quando Márcia retorna com a xícara fumegante, ele a repousa sobre a mesinha de centro. José olha para Márcia e, da maneira menos cruel possível, lhe dá a terrível notícia. Os joelhos da moça se dobram e ela cai debruçada sobre o tapete. Encurvada, com frêmitos, soluça compulsivamente. A artrose se esquece dos joelhos e José se agacha. Suspende aquele corpo caído com a ternura de um anjo e o guarda.
O tempo urge em abandonar o passado. José, aos 85 anos, abriga, na família do amigo, o amor de filha e de netos. Tal como uma velha árvore frondosa, generosa, a melhor sombra oferece e se renova. Agora apostam que tem no máximo 60.
Cris Lopes

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