terça-feira, 28 de julho de 2009

A Naja


Myrna caminha sem calçados, alienada. O acaso do momento quase a despiu. Roupas finas, destoantes com a noite gélida, lhe ignoram o corpo inteiriçado. Os bicos dos seios tesos, abusados, gritam sob a seda fina escarlate. As curvas fartas do quadril ondulam num balanço displicente e sensual. O vento frio tonteia-lhe os cabelos longos e negros. Percorre tal como mão despudorada a garganta estreitada e no centro de seu peito, encontra o lugar certo para penetrar-lhe. Os olhos grandes, ocultos em algum lugar, muito distante, revelam a mulher angustiada e solitária. Fábio a segue por quase meia hora. Sente-se atraído, de olhar fixo, como se ela fosse uma naja a dominá-lo no ar. Aquela mulher pode ser perigosa, porém existe apenas a possibilidade de copiar-lhe os passos descompassados. Saber o mistério, a música que a conduz. Seu corpo, sua mente desejam isso, inexplicavelmente desejam isso com urgência.
A racionalidade serve melhor ao medo, já a intuição é o cavalo da coragem. Lança-nos em labirintos, em abismos, em desertos, onde só existe o maravilhoso impulso de seguir a própria vontade. Muitas vezes só ganhamos feridas, dores, desatinos e desenganos. Entretanto, em raras ocasiões, revela encontros únicos, inesquecíveis, capazes de ensandecer bússolas. Sinaliza rumos, escolhe caminhos da forma mais eloqüente, repentina, e nos surpreende. Transborda emoções encasuladas que anseiam germinar. Derruba portas que nos permitem espionar um pouco do céu. E como sabê-lo? É preciso arriscar e se entregar à loucura.
Fábio observa que os passos da mulher fraquejam. Próximo, estende os braços para evitar-lhe a queda. O olhar preso no seu, lentamente despe-se do véu, aproxima-se e revela a cor de doces avelãs. Há neles muita umidade. Fábio sente vontade de abraçá-la, de aquecê-la, de afagar-lhe os cabelos alvoroçados,entretanto se contém. Não quer assustá-la. Deseja só que a música se aquiete.
-Meu nome é Fábio. E o seu?
-Myrna.
As mãos delicadas, cerradas, são espalmadas em seu peito. Fábio teme que vão empurrá-lo. No entanto, ela as deixa assim, apoiadas, sem peso. O triste olhar parece despertar manso. Espreguiça em movimentos lentos, cautelosos. Explora o seu rosto de homem: os contornos, os traços, as ocultas intenções. Fábio é atraente. O nariz longo combina perfeitamente com o queixo anguloso. Os cabelos fartos e ruivos contrastam ousados com os olhos miúdos e verdes. Myrna fixa o olhar em seus lábios. Penetra-lhe e desliza toda por sua boca. A sensação de engolir uma mulher inteira é galopante e o faz explodir num riso farto. O sorriso mais contagiante e iluminado que Myrna já recebeu. No céu, uma música começa a tocar, enquanto outra silencia.
Cris Lopes

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